Vamos parar de repetir propaganda autocrática de direita e de esquerda
Essa conversa de que a Ucrânia já perdeu serve à propaganda russa e americana trumpista. Não perdeu. Não há como a Rússia tomar a Ucrânia se ela resistir. A luta será rua por rua, quarteirão por quarteirão, bairro por bairro - e isso pode levar anos, a menos que sejam usadas armas nucleares (o que não ocorrerá por razões óbvias).
Os ucranianos estão se inspirando no discurso proferido por Churchill, em 1940, quando os Estados Unidos ainda não tinham entrado na guerra a favor dos aliados democráticos:
"Iremos até ao fim. Lutaremos nos mares e oceanos. Lutaremos com confiança crescente e força crescente no ar. Defenderemos nossa ilha, qualquer que seja o custo. Lutaremos nas praias, lutaremos nos terrenos de desembarque, lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas colinas; nunca nos renderemos."
Os países da UE (em sua maioria) não vão abandonar a Ucrânia, ainda que não consigam fornecer grande quantidade de armas, como os USA, para uma guerra convencional. Mas quem disse que a nova fase da guerra que está começando será convencional?
A propaganda russa e da extrema-direita trumpista e mundial é insidiosa. Zelensky não renunciou e nem ameaçou renunciar: disse apenas que pode trocar sua posição como chefe de governo pela entrada da Ucrânia na OTAN. O movimento dele está diplomaticamente certo. Porque se a Ucrânia entrasse na OTAN, a Rússia perderia a guerra, a menos que Trump destruísse a OTAN (o que ele não pode fazer sem cooptar os principais países europeus).
Vamos com calma. Nada está decidido. Há uma disputa em curso. Anunciar já a aniquilação de um lado é se render antes do desfecho da disputa.
Por certo a Europa agora está diante de uma bifurcação. Vamos ver se ela vai optar pelo caminho que a levaria à morte. Não se pode antecipar isso.
Precisamos também parar de repetir outra propaganda russa e do nacional-populismo nos EUA trumpista e mundo afora. A de que a extrema-direita está tomando o poder na Europa.
Não está. A AfD continua minoritária no parlamento alemão. Sua plataforma foi rejeitada por 80% dos alemães. E Merz, o vencedor do pleito, deixou claro que não tem "absolutamente nenhuma ilusão" sobre Trump. Afirmou independência dos EUA que "praticamente já não se importam com o destino da UE". Repudiou intervenções dos EUA e de Moscou. Disse que "a prioridade absoluta deve ser a unidade europeia".
“Ah! Mas ele vai acabar se aliando à extrema-direita”. Não vai. Merz acabou de declarar que seu partido, a CDU, não permitirá que o legado de 75 anos da sigla seja colocado em risco por uma parceria com a AfD:
“A AfD pode tentar nos estender a mão, mas não vamos ceder à política errada. Temos opiniões diferentes sobre a segurança, a política externa e a Otan. Não podemos arriscar a continuidade de nossa trajetória”.
Merz, ao contrário da AfD, apoia a Ucrânia e não vai se aliar à Rússia e ao eixo autocrático contra as democracias liberais.
Yascha Mounk, ontem (23/02/2023), no seu substack YM, escreveu:
"Por causa do apoio vocal (e, na minha opinião, equivocado) de Elon Musk à AfD, esta eleição alemã atraiu mais atenção internacional do que o normal. Grande parte dessa atenção se baseou em uma premissa equivocada. Nunca houve um risco realista de que a AfD pudesse "ganhar" esta eleição no sentido estrito de liderar — ou, nesse caso, até mesmo participar — do próximo governo. Como deveria ter ficado claro o tempo todo, o novo governo alemão será novamente composto por moderados."
A propaganda putinista e trumpista, por um lado, e a imprensa “progressista”, por outro, criam uma realidade que não existe. Nem a extrema-direita avançou tanto, como querem os primeiros, nem ela é o grande (e único) mal que assola o mundo e coloca em risco a democracia, como dizem os segundos. A maioria dos integrantes do eixo autocrático não é de extrema-direita. Ou agora a China, a Coreia do Norte, o Irã (e seus braços terrorista, como o Hamas, a Jihad Islâmica, o Hezbollah, os Houthis e mais uma dezena de organizações jihadistas coordenadas pela IRGC - a Guarda Revolucionária Iraniana), o Vietnam, o Laos, Angola, Cuba, Venezuela, Nicarágua (todos esses regimes, registre-se, apoiados pela Rússia), são de extrema-direita?
Foi a mesma propaganda nas eleições para o parlamento europeu e francesas. “A extrema-direita de Le Pen ganhou” - gritaram no primeiro caso. “A esquerda de Mélenchon ganhou” - gritaram no segundo caso. Não ganharam! Ursula van der Leyen (da CDU) continua à frente da União Europeia. Emmanuel Macron (do Renascimento, de centro) continua no governo francês. O fato de a extrema-direita e, em alguns casos, a esquerda, estarem aumentando sua participação parlamentar não significa que elas já tomaram ou vão tomar as rédeas dos governos europeus.
Repita-se. Há uma disputa em curso. Não devemos replicar propaganda autocrática, seja de direita ou de esquerda.
Tirando os casos da extrema-direita (reacionária) e da extrema-esquerda (revolucionária), não importa se as forças políticas nos governos europeus sejam ditas de direita (conservadoras) ou de esquerda (progressistas) e sim que mantenham seus regimes políticos como democracias liberais.