A ascensão do voto antissistema no Brasil
E a nossa incompreensão deliberada da insatisfação, rejeição e ressentimento político
Diogo Dutra, Inteligência Democrática (08/10/2024)
Nos últimos tempos uma parcela da esquerda brasileira tem demonstrado surpresa e até indignação com o surgimento de figuras como Pablo Marçal no cenário político. Marçal, um influenciador digital e empresário, atraiu uma quantidade significativa de votos nas eleições em São Paulo. Essa surpresa advém principalmente do fato de que tais figuras, frequentemente associadas à extrema-direita, conseguem conquistar um público expressivo, inclusive nas camadas mais pobres da população. A explicação usual de intelectuais e jornalistas é que isso seria uma manifestação de um conservadorismo enraizado (os chamados “pobres de direita”) ou, ainda, de algum tipo de manipulação religiosa associada ao crescimento do protestantismo-evangélico-pentecostal no Brasil.
No entanto, ao reduzir esses votos exclusivamente a essas características, muitos ignoram o significado mais profundo: como e por que esse eleitorado ignora denúncias de corrupção ou outras situações moralmente questionáveis sob a ótica ético-religiosa? O voto em figuras como Marçal é, em muitos casos, uma expressão clara de insatisfação com o sistema. Não é apenas uma questão de apoiar ideias conservadoras, mas também uma busca desesperada por alternativas ao modelo político tradicional.
Esse fenômeno reflete algo que remonta a 2013, quando grandes manifestações tomaram as ruas do Brasil. Muitos analistas, especialmente os de vertente progressista, subestimaram ou ignoraram a importância daquele momento, rotulando-o como o início da extrema-direita no Brasil. No entanto, o que estava em jogo era um clamor por uma nova visão política. De lá para cá, não apenas falhamos em endereçar essas insatisfações, como criamos mecanismos para inflamar, rejeitar e, consequentemente, alimentar um grande caldo de ressentimento que se torna, a cada dia, uma bomba-relógio para o país.
Eles em Nós: o que realmente aconteceu conosco?
Um dos poucos livros que oferece uma retrospectiva coerente sobre a política no Brasil nos últimos 10 anos é “Eles em Nós”, de Idelber Avelar. O autor consegue capturar, através da análise de discurso e de estudos antropológicos, um diagnóstico consistente do mal-estar brasileiro que emergiu em 2013 e que, desde então, evoluiu para uma série de crises políticas e sociais.
Avelar investiga “o que realmente nos aconteceu”, localizando o ponto de inflexão nas Jornadas de Junho de 2013 — um fenômeno ainda pouco compreendido pelos analistas e acadêmicos. O autor avança até o nascimento do bolsonarismo, mostrando como esse movimento foi uma consequência das tensões acumuladas e mal resolvidas daquela época.
Idelber Avelar sugere que a gênese do bolsonarismo está intrinsecamente ligada ao lulopetismo, ao lavajatismo e à incapacidade de reação dos atores políticos frente ao desconforto generalizado com o sistema político. Ele argumenta que, em vez de resolver o mal-estar crescente, o lulopetismo ajudou a criar antagonismos irreconciliáveis, abrindo espaço para o surgimento de um discurso político de ódio e polarização.
A polarização como norma e a antipolítica em cena
O lulopetismo, segundo Avelar, ajudou a transformar a política brasileira em uma guerra constante entre “nós e eles”. A política se tornou uma arena de antagonismos e não mais de conciliações, o que deteriorou o debate público e criou as condições para a ascensão de discursos antissistema. Esse modelo de política de guerra foi sustentado pela necessidade de se criar inimigos constantes, tanto para manter a base mobilizada quanto para justificar políticas populistas.
No entanto, o impacto das manifestações de 2013 e o desdobramento da Lava Jato, como Avelar mostra, criaram uma nova narrativa política, marcada pela desconexão e caos. A política deixou de seguir uma narrativa linear — como era com Lula, frequentemente retratado como herói épico — e passou a se estruturar em eventos desconexos, fragmentados, caracterizados pelo que Avelar chama de “novela bizantina”. Esse formato narrativo levou a uma estupefação constante e à sensação de que a política se tornou imprevisível e, muitas vezes, absurda.
O voto antissistema como símbolo de insurgência
Hoje o voto em figuras como Pablo Marçal não é apenas uma expressão de conservadorismo ou manipulação religiosa, como frequentemente se interpreta. Trata-se de um voto de desespero e rejeição ao sistema estabelecido, um grito por mudança em um sistema que parece alheio às necessidades da população. A falência do sistema político em oferecer respostas reais às demandas populares cria um vácuo que é facilmente ocupado por figuras que prometem a ruptura.
O desafio para a política brasileira é reconhecer essa insurgência e lidar com ela de forma construtiva. Como sugere Avelar, a incapacidade dos partidos tradicionais de oferecer uma alternativa convincente contribuiu para o crescimento de discursos populistas e autoritários.
Por uma revisão do desdobramentos das jornadas de Julho de 2013
O fenômeno do voto antissistema é, sem dúvida, uma reação ao esgotamento da política tradicional, marcada pela corrupção, polarização e falta de respostas concretas para os problemas cotidianos da população. Figuras como Pablo Marçal e Jair Bolsonaro são sintomas de um mal-estar profundo, que não pode ser ignorado ou simplificado. Para que o Brasil saia desse ciclo vicioso de polarização e ressentimento, é necessário que o sistema político, e a sociedade como um todo, reconheçam a legitimidade dessas insatisfações e busquem soluções que vão além da retórica de guerra.
A reforma política e a criação de um ambiente onde o diálogo e a cooperação prevaleçam são passos fundamentais para reconstruir a confiança no sistema democrático. Se continuarmos ignorando as demandas que emergiram com força em 2013, corremos o risco de perpetuar o ciclo de insatisfação e de alimentar ainda mais o voto de protesto e antissistema.
Diogo,bom dia, prazer em conhece-lo.
Li seu artigo (2 vezes), concordo com quase tudo.
Só acrescento uma outra pimenta neste tempero:
- 22 % de abbstencao a maior desde 1996.
Eu escolhi por me abatei, afirmei antes e confirmei depois para os leitores do NEIM
Em quase 58 anos vivendo a política, digo vivendo participando até ativamente, joguei a toalha
Todos os extremos me assustam, o centro ganhou a base de propina PIX.
Estou descontente?
Claro.
Mas na lida...jovens com você, meus filhos, meu neto, vão ter oportunidades de mudar o sistema exposto por você.
Contém comigo.
Diogo, obrigada pelo resumo. Penso igual ao Avelar. Há anos o Prof. José Álvaro Moisés alerta para a necessidade de renovação do sistema politico, que 2013 foi a manifestação de muita insatisfação. Deixo a sugestão de uma conversa com os dois no canal Livres da Polarização no YouTube.