A humanidade em ebulição: transição, metamorfose ou catástrofe?
Reflexões do ponto de vista da democracia, incluindo psicanálise contemporânea e filosofia da complexidade
Diogo Dutra, Inteligência Democrática (14/07/2024)
Com a colaboração de Luiz de Campos Jr, Rafael Ummus, Guga Casari e Mauai
Vivemos uma era de profundas transformações sociais e múltiplas crises cuja escala e velocidade estão ultrapassando nossa capacidade coletiva de processar e dar alguma resposta adequada. Diversos pensadores contemporâneos, intelectuais e pesquisadores tentam dar conta das diversas camadas de complexidade dessas crises para que formem algum tipo de diagnóstico e, assim, possam nos oferecer alguma possibilidade de operar nesse mundo.
Durante a minha caminhada de livre aprendizagem, encontrei um determinado fio (eventualmente associada a ideia de democracia como modo-de-vida) que vem me permitindo transitar por autores e pensadores, bem como assumir um ponto de vista, que me ajudaram a ressignificar minhas concepções de humano e humanidade. E é a partir desse ponto que eu gostaria de compartilhar as percepções que considero mais importantes sobre nossas crises atuais e os possíveis caminhos de operação/transição nesse mundo.
Crise do Iluminismo: múltiplas crises em Giannetti e Morin
Existem correntes de pensamento que costumam classificar o conjunto de crises atuais como uma crise do capitalismo, ou como uma crise da democracia liberal e eventualmente até como uma crise do mundo ocidental. Por mais que haja grande honestidade intelectual por boa parte desses pensadores e pesquisadores, sempre me pareceu uma análise enviesada e com baixo poder explicativo. Minha sensação era que a crise era mais profunda e talvez anterior a essas percepções todas. Talvez a análise que consegue mais engendrar também as reflexões sobre as crises climáticas/ambientais e as diversas crises da vida contemporânea (pensamento, educação, sociedade, trabalho, família) é a ideia de crise do mundo ocidental, assumindo que parte da construção da cultura ocidental carrega lógicas próprias que estão chegando a um limite. Porém, me parece estranha essa conceitualização pois ela pode nos levar a tentação de assumir que o pensamento ocidental carrega algum mal inerente e que sua contraposição, o pensamento (ou cultura) oriental, aporta todas as respostas para essas angústias. O que não me soa como verdade também.
Nesse sentido, me parece que a maneira menos ruidosa e contudo mais ampla, talvez até mais precisa em termos de diagnóstico, seria o tratamento dado por Eduardo Giannetti em seu livro "Felicidade": que vivemos na verdade uma crise do iluminismo.
"A equação fundamental do iluminismo europeu pressupunha a existência de uma espécie de harmonia preestabelecida entre o progresso da civilização e o aumento da felicidade. A resultante do processo, ou seja, a construção gradativa de um mundo como nunca se vira na história, desde a expulsão do primeiro casal do paraíso, era o efeito da combinação de vetores de mudança que não só corriam juntos mas que se alimentavam e se reforçavam mutuamente. Eram eles:
o avanço do saber científico;
o domínio crescente da natureza pela tecnologia;
o aumento exponencial da produtividade e da riqueza material;
a emancipação das mentes após séculos opressão religiosa, superstição e servilismo,
a transformação das instituições políticas em bases racionais, e
o aprimoramento intelectual e moral dos homens por meio da ação conjunta da educação e das leis."
Se a decorrência dessas múltiplas crises surge a partir de uma expectativa não alcançada (ou até mesmo impossível) de uma grande narrativa de mundo e de felicidade, então a formulação de Giannetti parece muito precisa.
O saber científico passa por uma profunda crise. Ao mesmo tempo que estamos imersos em uma superabundância de informações, a hiperespecialização reduz a complexidade dos problemas reais nos fazendo questionar realidade, narrativas, fatos e evidências de maneiras que nenhuma revisão por pares consegue acompanhar ou mesmo lidar de maneira efetiva;
O domínio da natureza pela tecnologia encontra uma degradação crescente de uma biosfera que aponta para um ponto de não retorno;
O aumento de produtividade e riqueza material é asfixiado por uma realização da concretude da escassez e por consequências sociais de segunda e terceira ordem;
A ideia de emancipação das mentes não só naufraga por conta das pessoas passarem a servir eventualmente novas religiões laicas (como por exemplo ideologias), como também pela falta de elementos de sentido e conexão que as práticas espirituais comungam;
A política deixa de ser o espaço da razão e da razoabilidade para ser um operador do medo e da perpetuação da "guerra por outros meios";
O aprimoramento intelectual e moral perde sentido em uma era de busca de prazeres líquidos e imediatos.
E mesmo sem utilizar o termo de crise do iluminismo, Edgar Morin, em "A via: para o futuro da humanidade", aborda as crises atuais dessa mesma maneira, ou seja, uma série de desafios interligados que exigem uma abordagem holística e complexa. Morin argumenta que a regeneração das relações sociais, a reforma da educação e a transformação das práticas coletivas são essenciais para enfrentar as crises contemporâneas.
"A globalização, a ocidentalização, o desenvolvimento são, assim, os três alimentos da mesma dinâmica que produz uma pluralidade de crises interdependentes, justapostas, entre elas a crise cognitiva, as crises políticas, as crises econômicas, as crises sociais que, por si sós, produzem as crises da globalização, da ocidentalização, do desenvolvimento. A gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue atingir o estado de humanidade."
Se entendemos, portanto, que estamos em um ponto de virada coletivo, que somente uma metamorfose social, uma transformação profunda das práticas e pensamentos coletivos podem evitar a catástrofe e construir um futuro sustentável e justo, então precisamos entender o que na estrutura do próprio pensamento iluminista apresenta as genealogias das crises e o que significa superá-lo. Não será possível resolver as crises utilizando do mesmo ferramental que as criou. E aí está a grande dificuldade dos intelectuais atuais que buscam no vazio novas narrativas para se colocar no lugar da fracassada.
Crise da estrutura: psicanálise, Lacan e Forbes
Talvez, ao invés de investigar as formas e sistemas que externamente operam nossas vivências em sociedade e que, de maneira sintomática, reverberam todas essas crises, parece sensato investigarmos o que se dá na interface entre os sistemas e as pessoas. O que as crises, do ponto de vista da psicanálise, consegue nos dar de pistas para algum tipo de saída para metamorfoses individuais e coletivas.
O curioso é que a psicanálise nunca fez parte das minhas investigações pessoais, porém foi assistindo um episódio do programa de entrevistas “Democracia na Teia” de Luis Felipe Pondé que entrevistava o médico psiquiatra e professor Jorge Forbes que minha mente se abriu para essa via de investigação. Talvez por entender que essa leitura de Forbes sobre a Psicanálise (Lacaniana principalmente) se conecta com a forma que tenho enxergado o nosso momento atual como sociedade.
Tanto por meio de livros e aulas de Forbes, como por um primeiro mergulho em Lacan e na turma de pesquisadores e analistas que vêm aprofundando a esquizoanálise, cada vez mais me convenço de que esse novo mundo que se posta diante da gente exige um salto de maturidade importante. Um salto que reconhece as inconsistências, incompletude e a complexidade da realidade (individual e coletiva), mas que ao mesmo tempo nem fica paralisado nem retroage para a busca de uma velha concepção fechada de mundo (onde existe mais conforto).
Abaixo coloco um pequeno recorte de fala de Forbes no programa “Democracia na Teia” de Luis Felipe Pondé (que é possível encontrar via Youtube):
“Nesse momento que a gente está mudando de época, que nós estamos saindo da modernidade para a pós modernidade, o principal elemento para mim essencial, que me convence mais, é sair de uma organização social vertical para uma organização social horizontal. O que quer dizer isso? Uma organização social vertical seria o tempo onde nós tínhamos padrões fixos de referência. Na família o pai, na empresa o chefe, na sociedade civil a pátria. São três elementos verticais onde as pessoas podem mirar no exemplo ou contestar. Ser rebelde ou ser adequado. Eu entendo que no momento em que, especialmente dos anos 95 (digo isso essa data por causa do surgimento da web), você horizontaliza a organização social, você horizontaliza as identificações e você não tem mais um padrão de conduta, você perde o norte. Então aquele norte muito claro no mundo anterior deixa para ter uma multiplicidade de opções no mundo atual (…). E para muitas pessoas isso é um profundo sofrimento. E eu acho que não deveria ser. Eu acho que deveria ser fantástico porque na época atual ela é mais coerente com a espécie humana... O Freud inventa uma estrutura, chamada complexo de Édipo, onde ele coloca um padrão de referência que é o pai e três formas diversas de você se relacionar com esse pai para tentar chegar ao mundo (…). E essa [explicação] durou por 100 anos. Porque durante 100 anos nós vimos o mundo edipicamente. E eu comecei a me interessar muito pelo mundo atual e pela pós-modernidade porque clinicamente eu via que fase a análise na clave do Édipo não funcionava mais da mesma maneira.”
Portanto Forbes, em suas reflexões sobre a transição da modernidade para a pós-modernidade, destaca a mudança de uma organização social vertical para uma horizontal. Ele argumenta que a perda de padrões fixos de referência, como a figura paterna, o chefe ou a pátria, leva a uma multiplicidade de opções que, embora inicialmente possam causar sofrimento, são mais coerentes com a natureza humana.
Essa nova configuração social exige que as pessoas estejam prontas para o acaso e para a surpresa, responsabilizando-se por suas ações de maneira semelhante à ética dos artistas. Forbes sugere que estamos sofrendo mais do que deveríamos porque estamos utilizando velhas soluções para novos problemas.
Ou seja, a grande questão de Forbes, ao analisar essa quebra de estrutura enquanto fenômeno social é que, como a gente sempre foi ensinado a se identificar dentro de uma estrutura social organizada, quando somos colocados em um espaço de possibilidade tão amplo nós sofremos por falta de direção. E entramos em crise por isso. O trabalho importantíssimo que decorre portanto de uma leitura de Lacan e dos atuais esquizoanalistas é que existe uma forma de operar nesse novo mundo e essa seria uma forma muito mais humana. Ou seja, ao invés de sofrermos pela falta de norte, porque não abraçamos esse espaço como a grande oportunidade que essa época nos dá de inventar o novo? De nos inventar a nós mesmo a cada passo que damos?
A sensação que temos é que essa nova vertente da psicanálise foge dos preceitos fundamentais da ideia simplista de razão e das soluções de uma psicanálise puramente freudiana que pertence às raízes iluministas. Portanto, seria parte dessa corrente uma pista de resposta para esse mundo que se abre diante de nós e que aterrorizados a gente prefere regredir como sociedade ao invés de avançar?
A origem matrística em Maturana. A questão patriarcal
Por fim, parte do que talvez seja preciso superar é a noção de que existe uma essência humana má ou que essa essência se apresenta na natureza no formato de dominação do ser mais forte sobre o ser mais fraco. As estruturas hierárquicas e verticais, essas que a partir da percepção de Forbes estão sendo dissolvidas na contemporaneidade, apresentam em suas dinâmicas o processo competitivo pelo domínio das posições no campo (como diria Bourdieu), ou seja, é criado um espaço artificial de escassez de posições que "naturalmente" gera luta. Seria então inútil resistir a isso? Estaríamos fadados como humanidade à uma eterna luta de posições? Ou existe alguma forma de mudar o campo? Mudar a dinâmica do jogo?
O biólogo e filósofo chileno Humberto Maturana (1993), em seu texto “Conversações matrísticas e patriarcais”, parte do livro "Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano", reconstrói as origens biológicas e sociais em busca do momento histórico em que nós criamos essa estrutura, que ele denomina como patriarcal, ou seja, um modo de vida que promove relações hierárquicas e de dominação. Maturana sustenta que nossa essência pertence mais a um modo de vida matrístico, ou seja, um modo que promove a coexistência, a aceitação da legitimidade de todas as formas de vida e a possibilidade de consenso na convivência. E mesmo que nossa sociedade tenha adotado durante milênios estruturas de organização baseadas no modo patriarcal, que a relação essencial (mãe e filho) sustenta em cada um de nós uma lembrança desse modo de operar.
“O modo matrístico de viver abre intrinsecamente um espaço de coexistência, com a aceitação tanto da legitimidade de todas as formas de vida quanto da possibilidade de acordo e consenso na geração de um projeto comum de convivência.”
Maturana sugere que a superação dos problemas atuais da humanidade não depende apenas de conhecimento técnico, mas de uma recuperação da sensibilidade, dignidade e respeito mútuo, características do modo de vida matrístico.
Por fim, na mesma obra, Maturana associa o modo de vida matrístico à invenção e à prática da democracia. Ele argumenta que a democracia deveria ser uma forma de convivência baseada em cooperação, consenso e acordos, e não na competição e na submissão. E que frequentemente é negada por conversações recorrentes de apropriação, hierarquia, dominação e controle.
“A democracia não opera como poder, autoridade ou exigências de obediência. Muito ao contrário, ela se realiza por meio de condutas que surgem de conversações de co-inspiração que geram cooperação, consenso e acordos.”
Assim, depois de investigar as crises do iluminismo e associar a uma crise de estrutura captada pela vertente lacaniana da psicanálise conseguimos, via Maturana, desfazer um nó sobre uma lógica cultural (e uma carga cultural imensa) do modo de vida patriarcal que só se desfaz se entendermos a essência do modo de vida matrístico (não matriarcal). Por fim, a relação do modo de vida matrístico com a democracia nos permite mudar completamente o ponto de vista sobre as atuais crises do mundo e, ao invés de desistir da democracia, dobrar a aposta nela. E dobrar, não como uma ideologia nova ou uma nova narrativa de mundo, mas como um modo de vida a ser construído e melhorado a cada dia por quem quer viver coletivamente dessa maneira.
Duplicar a aposta na democracia e a democracia radical de Dewey
Pensar na renovação de um modo de operar a partir da realização de uma grande crise sistêmica não é trivial e qualquer imposição ou mesmo operação simplesmente cognitiva é ineficaz. Aprender ou reaprender um operar matrístico se faz na prática e o melhor meio coletivo de se praticar é por meio da democracia. Essa ideia, por fim, nos aproxima da ideia seminal de ‘democracia radical’ do filósofo e pedagogo americano John Dewey.
A democracia radical de John Dewey é uma abordagem filosófica que enfatiza a democracia como um modo de vida mais do que apenas um sistema político. Dewey acreditava que a democracia deve permear todas as áreas da vida social e não se limitar apenas ao governo. Ele defendia a importância da educação, comunicação e participação ativa dos cidadãos na construção de uma sociedade democrática. Para Dewey, a democracia é um processo contínuo de desenvolvimento e adaptação, onde a liberdade individual e a cooperação comunitária se complementam para promover o bem comum.
Portanto, parece que a resposta para as múltiplas crises que estamos vivendo está em uma nova maneira de operar, de aprender e criar junto. E tudo isso se daria por meio de uma nova reinvenção da democracia. Ou seja, apostar na contínua melhora do modo de vida democraático, seja na sua versão como regime de governo, seja na sua versào como modo de vida. O trágico nesse momento é começar a ver tantas manifestações e escolhas que parecem desistir desse modo de vida.
E é tão significativa essa mudança que ela se dá para além das ideias iluministas, que instintivamente estão enraizadas na estrutura do modo patriarcal. Se dá no modo de operação e não necessariamente num modo de convencimento racional. Se dá em uma forma matrística de incluir e coexistir com o diferente e não criando alfândegas que inibem acesso e participação. Se dá na forma de recriar as formas de colaboração ampliando as possibilidades via tecnologia e produtividade sem cair nas superespecializações e nas linhas de produção. E se dá principalmente em formas de relação e construção de afeto descolados das relações de sentido racional, inclui-se o emocionar nesse processo a ponto dele também fazer parte do modo de vida, ao invés de reprimi-lo.
Por fim, mesmo que Morin não tenha chegado a essas conclusões, ele aponta reflexões (em seu livro A via) que nos afastariam da catástrofe e da autodestruição que essas múltiplas crises que estamos vivenciando:
"Quando um sistema é incapaz de tratar seus problemas vitais, ou ele se degrada, se desintegra, ou se revela capaz de suscitar um metassistema apto a tratar de seus problemas: ele se metamorfoseia."
"O provável é a desintegração. O improvável, mas possível, é a metamorfose."
"A noção de metamorfose é mais rica do que a de evolução. Ela conserva sua radicalidade inovadora, mas conecta-a à conservação (da vida, das culturas, da herança de pensamentos e sabedorias da humanidade)."
"Tudo sempre começa com uma iniciativa, uma inovação, uma nova mensagem de caráter desviante, marginal, com frequência invisível aos contemporâneos."
"Para elaborar as vias (para o futuro)... é necessário que nos libertemos das alternativas: (...) crescimento/decrescimento; desenvolvimento/envolvimento; conservação/transformação; é preciso simultaneamente crescer e decrescer, desenvolver e envolver, conservar e transformar."
"Não basta mais denunciar. Doravante precisamos enunciar. Não basta apenas relembrar a urgência. É preciso também saber começar, e começar por definir as vias capazes de conduzir (ao futuro)."
Dobrar a aposta da democracia, não como narrativa, mas como modo de vida. Este seria de fato o processo que potencialmente pode desencadear uma metamorfose. Será que essa aposta conseguirá frear a velocidade frenética e a escalada dos acontecimentos no mundo? Não é possível saber. Mas fazer diferente disso é aumentar essa escalada e nos aproximar da catástrofe. É preciso que redobremos a aposta na democracia. É preciso que a gente restaure as conversas e o processo de colaboração no espaço público. É preciso enfrentar cada situação a partir do ponto de vista da democracia e do modo de viver democrático. É a partir daí que tudo pode recomeçar.