A quinta falha da democracia
Augusto de Franco, Inteligência Democrática (20/09/2024)
Conhecíamos já quatro falhas ("genéticas") da democracia. Agora estamos descobrindo uma quinta falha. Quais são elas?
1 - A democracia não tem proteção eficaz contra o discurso inverídico.
2 - A democracia não tem proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia.
3 - A democracia não tem proteção eficaz contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e o sustentam.
4 - A democracia não tem proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interações de opiniões.
5 - A democracia não tem proteção eficaz contra o uso extremado e indevido de uma suprema corte para impor politicamente à sociedade, a partir do Estado, sua concepção particular de democracia.
Comentemos cada um dessas falhas.
A democracia não é o regime perfeito. Não existe regime perfeito. Podemos considerar que a democracia apresentou, do final do século 6 a.C. até hoje, algumas falhas “genéticas” (ou erros de projeto) importantes, algumas percebidas já no início e outras só bem recentemente.
Já abordei as quatro primeiras falhas da democracia no capítulo 15 do meu livro mais recente, Como as democracias nascem. Abaixo segue um resumo.
PRIMEIRA FALHA
A democracia não tem proteção eficaz contra o discurso inverídico.
Esta falha já havia sido percebida pelos primeiros democratas, os atenienses do século 5 a.C. Observando a jactância dos demagogos, que prometiam em assembleia o que não podiam fazer, os democratas perceberam a falha, mas não conseguiram encontrar uma maneira tempestiva de consertá-la. Como, até hoje, a solução não apareceu e – como dizia Khrushchov – os políticos prometem construir pontes até onde não existe rio, a vulnerabilidade permaneceu.
Uma coisa, porém, é a demagogia que, ao contrário do que acreditava Aristóteles, não é capaz de destruir a democracia e é metabolizável por ela. Outra coisa, muito diferente, é o uso instrumental da mentira pela nova forma maligna que a demagogia tomou: o populismo.
Os populistas mentem o tempo todo. Mentem não por algum desvio de caráter. Mentem não apenas porque querem levar vantagens pessoais. Mentem sistemática e estrategicamente para destruir a democracia, tornando irrelevante a ideia de verdade e a necessidade de coerência ou correspondência entre os opiniões e os fatos. Para tanto, criam novos fatos (fakes) reduzindo a possibilidade da persuasão, do convencimento e do esclarecimento (ou entendimento comum).
SEGUNDA FALHA
A democracia não tem proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a democracia.
Esta segunda falha só foi percebida na democracia dos modernos, após a adoção em larga escala dos processos eleitorais como meios de representação da vontade política de indivíduos. Como a falha anterior ela ficou, até agora, sem solução.
Sabendo disso, os populistas se apropriam das técnicas eleitorais e usam as eleições como se fosse uma guerra contra um inimigo (externo e interno); ou seja, os adversários passam a ser inimigos internos (agentes do inimigo externo infiltrados no país) e são considerados habitantes ilegítimos. Se os populistas se dizem de esquerda, o inimigo externo é o imperialismo, a CIA, o capitalismo apátrida ou o neoliberalismo e seus agentes internos são as elites (a burguesia, o capital financeiro ou os rentistas e… os liberais). Se os populistas se dizem de direita, o inimigo externo é o globalismo, o comunismo, a trilateral, o Clube de Bilderberg e seus agentes internos são (novamente) as elites (os cientistas e os intelectuais, os artistas, os universitários e… os liberais). Como se sabe os populismos (digam-se de esquerda ou de direita) se caracterizam por achar que a sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o povo) do “establishment” (as elites).
Ao fazerem isso, os populistas polarizam completamente o cenário político e, numa polarização acirrada, há sempre – por uma fenomenologia da interação social – uma tendência ao equilíbrio das forças dos contendores (até mesmo um empate) em que qualquer perturbação no sistema (introduzida com facilidade por quem está no poder) pode fazer a balança pender a seu favor.
Os populismos, ditos de esquerda ou de direita, sempre usam a democracia contra a democracia. Exemplos? Maduro e Ortega são neopopulistas (da esquerda bolivariana) que viraram ditadores. Orbán, que é populista-autoritário, de extrema-direita, tomou o mesmo caminho. E Bolsonaro, mais um populista-autoritário, tentou fazer no Brasil, em 2022, exatamente o que Trump quis fazer nos EUA em 2020.
TERCEIRA FALHA
A democracia não tem proteção eficaz contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e o sustentam.
Esta terceira falha só foi percebida no último século. Os populistas desrespeitam todas as normas (que não podem e não devem virar leis), esgarçando a base social (de confiança e civilidade) sem as quais os mecanismos de freios e contrapesos das instituições não funcionam mais a contento, ainda que as instituições continuem formalmente funcionando. Em outras palavras, eles aceleram a dilapidação do capital social que, se cair abaixo de certos níveis, transforma a democracia num regime menos substantivo, apenas formal.
Todos conhecem numerosas regras não escritas que possibilitam o pacto que permite a democracia e fazem parte dos bons costumes políticos que não devem ser violados, nem mesmo em contendas acirradas. Alguns exemplos:
√ Aceitar a derrota
√ Parabenizar o vencedor
√ Não tripudiar sobre o derrotado
√ Não mentir
√ Não acusar as regras (que foram aceitas antes da contenda) pela derrota
√ Não tentar mudar as regras durante o jogo
√ Não alegar falsamente que perdeu porque houve fraude
√ Não deslegitimar o adversário
√ Não encorajar a polarização (nós contra eles)
√ Não transformar o adversário em inimigo (da pátria, do povo, da nação, do Estado, de Deus)
√ Não levantar falso testemunho perante a justiça (nem praticar litigância de má-fé) contra um adversário
√ Tratar as divergências por meio de um debate aberto e tolerante, valorizando a moderação e a busca do consenso
√ Fazer oposição leal
Populistas de direita, como Orbán, Erdogan, Trump, Salvini, Le Pen, Ventura, Abascal, Wilders, Fico, Bukele, Bolsonaro, Farage, Chrupalla, Weidel e Gauland violam todas ou a maioria dessas regras. Populistas de esquerda, como Daniel Ortega e Nicolás Maduro, Rafael Correa, Fernando Lugo, Manuel e Xiomara Zelaya, Cristina Kirchner, Maurício Funes, López Obrador, Gustavo Petro, Luis Arce (e Evo Morales) e Lula da Silva, também violaram ou violam essas regras.
O fato é que a democracia não pode ser protegida apenas pelas leis (escritas). Por isso todo legalismo é insuficientemente democrático. Não, não basta não violar as leis para proteger a democracia. Sem um pacto social, mesmo que tácito, de respeito aos bons costumes políticos (as normas não escritas), a democracia fica indefesa quando se elege um tirano cujo programa é de destruição da democracia.
É a velha pergunta de Sir Ralf Dahrendorf em meados dos anos 90: e se os caras errados forem eleitos? A resposta-padrão, de que será possível trocá-los nas próximas eleições, só funciona para democratas (para os que respeitam as regras escritas e as não escritas). Se a intenção do autocrata que foi eleito é destruir a democracia, então ele muda as regras, enquanto estiver no poder, de sorte a diminuir ao máximo suas chances de derrota nas próximas eleições.
Para os populistas as eleições não são um modo de verificar a vontade política coletiva e sim um artifício para alcançar o poder e nele se manter. Por isso é tão difícil tirar do poder um líder populista apenas pelo voto. Se pressentem que vão perder, os populistas mudam as regras. Se perderem de fato, não aceitam os resultados.
QUARTA FALHA
A democracia não tem proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interações de opiniões.
Esta falha só foi percebida muito recentemente (na última década). Os populistas, acionando suas facções, promovem ataques de enxame (swarm attacks, contra os quais não se conhece defesa) para inviabilizar a emergência de uma opinião pública, substituindo-a pela soma de opiniões privadas e, com isso, estilhaçam a esfera pública em miríades de esferas privadas, destruindo o processo de formação e de verificação da vontade política coletiva. Embora o problema seja recente, notadamente depois que mídias sociais e programas de mensagens apareceram e foram colonizados por facções populistas, já há vasta literatura sobre o fenômeno, mas não solução. Hoje este é o problema mais importante que a democracia enfrenta e que pode inviabilizá-la como modo de regulação de conflitos.
A QUINTA FALHA
A democracia não tem proteção eficaz contra o uso extremado e indevido de uma suprema corte para impor politicamente à sociedade, a partir do Estado, sua concepção particular de democracia.
Esta falha foi percebida a partir do surgimento dos novos populismos do século 21 - o populismo-autoritário ou nacional-populismo e o neopopulismo dito de esquerda, sobretudo na América Latina.
Esta última falha poderia ser descrita também como:
A democracia não tem proteção eficaz contra juízes que abraçam a noção de 'democracia militante' e passam a atuar como "soldados da democracia".
O caso mais notório é o do comportamento do Supremo Tribunal Federal (e do seu apêndice Tribunal Superior Eleitoral) no Brasil da terceira década do século 21. Indicados políticos para compor esses tribunais, com uma visão precária - dir-se-ia mesmo pedestre - de democracia, passam a atuar politicamente. Alguns desses recuperam e ressignificam o estranho conceito de ‘democracia militante’ introduzido em 1937 por Karl Loewenstein (vale a pena ler a íntegra do artigo original de Loewenstein). Em suma, ele diz que os procedimentos da democracia não são suficientes para enfrentar ameaças como a do fascismo e que, portanto, justificam-se medidas autoritárias adotadas pelo poder judiciário e pelos demais poderes do Estado para enfrentá-las. Trata-se de preservar a democracia por métodos não democráticos.
Não se sabe ainda se essa é uma particularidade de países com cultura democrática deficiente ou se a moda vai pegar também em vários lugares do mundo. O comportamento da suprema corte americana atual mostra que há motivos para fundadas preocupações.
O problema, na verdade, é antigo. A democracia ateniense eliminou-o em seu nascedouro. Se Efialtes não tivesse proposto, em 461 a.C. uma reforma do Areópago (uma espécie de suprema corte da época em Atenas), retirando-lhe o poder político, provavelmente nunca teríamos ouvido a palavra democracia. Pois a “corte judicial” ateniense era composta, em sua maioria, por oligarcas, advindos da aristocracia fundiária, declarados adversários da democracia. Ajudou bastante também a introdução do sorteio, não se sabe proposto por quem, anulando na prática o poder de nomear e decidir por maioria.
Não se pode defender - a não ser com argumentos oblíquos - que o judiciário seja um poder equivalente ou equiparável aos demais poderes em uma democracia. Claro que há toda uma “tradição” argumentativa de equilíbrio dos poderes e do papel contramajoritário a ser desempenhado por uma aristocracia de indicados políticos para contrabalançar as paixões e os viezes eleitorais (majoritaristas) dos parlamentos e dos governos. Mas esse é um argumento fraco do ponto de vista democrático. Sim, os tribunais superiores são aristocracias, no sentido original do termo (= aristoi, ἄριστοι, os melhores) e tanto é assim que a escolha de seus membros é justificada por atributos como “notável saber” ou “notório saber”, o que revela um critério meritocrático - não um justo reconhecimento do mérito e sim a associação entre mérito e posição diferencial de poder (= cratos, kράτος) - não propriamente democrático.
Pois bem, se um tribunal supremo, com funções políticas, resolve adotar medidas para manter a prevalência das suas concepções, não há muito o que fazer dentro das regras institucionais. Antes de qualquer outra razão porque nenhum tribunal desse tipo está submetido a controle externo efetivo: os reguladores do seu comportamento (no caso do Brasil e de outros países, o Senado) estão sempre sob a ameaça tácita de serem julgados, em caráter irrecorrível, pela instância que devem regular.
O exercício de um poder sem controle introduz uma anomalia no sistema institucional da democracia, levando seus integrantes a não mais distinguir entre império da lei e império das instituições encarregadas de interpretá-la e aplicá-la. Uma suprema instância judicial invadirá as competências de outros poderes não, como se diz, em razão da omissão de parlamentos e governos, e sim, simplesmente, porque pode fazê-lo - seja monocraticamente, por iniciativa de algum juiz atrevido, seja coletivamente, escorada no ambiente corporativo que se configura. Assim, decisões monocráticas parciais, descabidas ou mesmo esdrúxulas, serão ratificadas pelo “sindicato”, que age dessa forma para não perder o poder que foi conquistando na prática, gerando superavits de poder. E pior, passa a encarar os que criticam o seu comportamento como adversários ou inimigos, atuando como um partido político.
No limite, toda a sociedade fica vulnerável ao arbítrio de um pequeno grupo de pessoas (uma “corte” mesmo) que, na prática, diz o que é legal ou ilegal, permitido ou proibido, justo ou injusto, correto ou errado, bom ou mau. Sim, a fronteira entre o julgamento jurídico e o julgamento moral é muito tênue e pervasiva.
Se juízes, sobretudo de uma corte suprema, resolvem atuar como militantes de uma causa, de uma concepção que consideram a única verdadeira, justa ou correta, a democracia fica fragilizada. Sobretudo quando sua concepção de democracia é primária, reduzindo-a a Estado de direito. E a única coisa que resta então aos democratas é implorar, pateticamente, por auto-contenção da corte.