Não há democracia sem oposição democrática
Não há democracia (no sentido liberal do termo) sem (pelo menos uma) oposição democrática reconhecida e valorizada como fundamental para o bom funcionamento do regime. Situação (governo) há em qualquer regime (inclusive nos regimes autocráticos). Oposição (democrática) só nas democracias. Mas uma oposição democrática não cai do céu. Tem de ser construída pelos democratas.
Numa democracia, oposição democrática é aquela que atua criticando o governo e propondo a sua substituição, dentro das regras da democracia. Não quer mudar o regime (de democracia para autocracia). Quer mudar o governo.
Pode haver oposição não-democrática numa democracia? Pode. Deve ser reprimida? Não, desde que não viole as leis (ou não atente contra o Estado democrático de direito). Mas uma oposição não-democrática, que tenha como objetivo mudar o regime, deve contar com forte oposição dos democratas.
Se você é um democrata que não concorda com o governo, mas se exime de criticá-lo e de propor a sua substituição, então você não está fortalecendo a democracia, mas enfraquecendo-a. Não há democracia (liberal) sem oposição democrática (atuante). Não adianta confessar para seus amigos e amigas mais próximos que é oposição e não fazer nada. Não existe oposição in pectore.
Também não adianta ficar esperando as próximas eleições para fazer oposição. Uma oposição democrática tem que existir e atuar em todos os momentos em que existe e atua o governo. Não é uma aposta na loteria do calculismo eleitoreiro.
Se um governo se diz democrático, mas não reconhece e valoriza a oposição democrática como fundamental para o bom funcionamento do regime, então esse governo não é, na verdade, democrático, ainda que o regime político possa ser considerado formalmente democrático, como é o caso do Brasil. Em geral um governo que deslegitima as oposições - não apenas as antidemocráticas, mas também as democráticas - é um governo antipluralista.
O antipluralismo é uma das características do populismo. Todo populismo é iliberal, mesmo quando se diz democrático - não importa para nada que seja considerado de esquerda ou de direita. Se apresenta democrático, em geral, porque adota a via eleitoral para empalmar o poder. Só isso. Ou seja, as eleições periódicas não fazem parte, para esse tipo de governo antipluralista, do metabolismo próprio da democracia. É uma guerra para tomar o governo, em que as armas são os votos. E nessa guerra vale tudo, começando por deslegitimar qualquer oposição.
Se você se diz democrata, mas não faz oposição aos populismos e autoritarismos, no governo ou fora dele - sejam ditos de esquerda, de direita ou extrema-direita - então sinto muito dizer: você não é realmente um democrata. O problema é que não há democracia sem democratas.
Dito isto, há razões para qualquer democrata fazer oposição democrática ao governo Lula e, ao mesmo tempo, fazer oposição à oposição antidemocrática representada pelo bolsonarismo? Sim, há muitas razões. Vejamos algumas delas.
Um democrata não pode aceitar corrupção por motivos estratégicos de poder, nem corrupção para enriquecer a própria família.
Um democrata não pode concordar com o neopopulismo dito de esquerda, nem com o populismo autoritário dito de direita - porque ambos são iliberais.
Um democrata não pode contemporizar com Putin, nem apoiar Trump, o MAGA e os tecnofeudalistas.
Um democrata não pode deixar de denunciar a guerra atualmente movida pelo eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Laos, Vietnã, Irã, Cuba, Venezuela, Nicarágua etc.) para exterminar as democracias liberais, nem pode se omitir de criticar seus instrumentos organizativos, como o BRICS (uma articulação política, coalhada de ditaduras, disfarçada de bloco econômico) e, simultaneamente, não pode deixar de denunciar a coalizão de forças nacional-populistas de extrema-direita (Trump, Bukele, Orbán, Erdogan, Farage, Salvini e Meloni, Ventura, Abascal, Le Pen e Bardella, Chrupalla e Weidel et coetera).
Sim, é isso mesmo: um democrata não é, a rigor, de esquerda, nem de direita, porque não toma a política como uma questão de lado e sim de modo: modo de regulação de conflitos.
Um democrata defende um modo não-guerreiro de regulação de conflitos. Assim, não pratica a política como uma continuação da guerra por outros meios. Quer dizer, não trabalha na base do "nós contra eles" porque sabe que, agindo assim, estará gerando o seu oposto (ou construindo um inimigo) por comportamento-anti. O "eles" é o anti-nós. Porque o "nós" é sempre anti-eles no momento em que é enunciado e intentado, mesmo quando o "eles" ainda não existe. Porém existirá. Isso significa enantiodromia.
Um democrata toma o sentido da política como a liberdade e não a ordem - e, assim, não tem nenhuma ordem preconcebida para impor aos outros.
Um democrata não é um revolucionário disfarçado de progressista, nem um reacionário travestido de conservador.
E é por tudo isso que um democrata recusa o lulopetismo e o bolsonarismo e faz oposição a ambos.