Frequentemente muitas pessoas demonstram simpatias por Trump porque ele teria vindo para acabar com a influência excessiva da ideologia woke ou o comportamento identitário que contaminou parte do establishment democrático americano. Sim, o identitarismo ultrapassou todas os limites e pode ser responsabilizado, pelo menos em parte, pela insatisfação de muitos eleitores americanos com os Democratas. Muita gente não aguenta mais a invasão do politicamente correto nas instituições governamentais, sociais e até empresariais. Nas universidades então, nem se fala.
Mas é preciso tomar cuidado com isso. Aquele que, supostamente, veio para acabar com os “wokes” afigura-se como um perigo bem maior para a democracia.
Antes de qualquer coisa é bom deixar claro que não há uma razão exclusivamente política para a admiração por Trump. Só a lama, depositada camada sobre camada, no fundo do poço da cultura patriarcal (mítica, sacerdotal, hierárquica e autocrática), pode explicar isso. Essa admiração emocional, quase sexual, pelo homem forte, o herói, o que veio colocar ordem na casa é reveladora. Ordem na (minha) casa. América First é my home comes first. Os trumpistas entenderam que os wokes queriam lhes tomar a casa. Isso diz muito para quem conseguiu interpretar a Odisseia. Como se sabe, ao contrário de Aquiles que, na Ilíada, possuído de inigualável coragem (e sobretudo tomado pela ira) mata na ida e não volta mais, o astucioso Odisseu mata na volta, mas depois de enfrentar inúmeras dificuldades e elimina cruelmente os que, aproveitando sua longa ausência, queriam lhe tomar a casa. Evoca Mommsen, que percebeu a servidão da casa. Aponta para o inverso da democracia, em que as pessoas saem de casa para se encontrar na praça. O épico é trágico e começa ou termina em inimizade e violência. Implica exigência, não liberdade.
De um ponto de vista político, porém, o trumpismo MAGA foi a pior coisa que poderia ter acontecido para a democracia no mundo desde a ascensão dos totalitarismos a partir dos anos 20 do século passado.
Trump é um adversário da democracia liberal, nos Estados Unidos, na Europa e em todo mundo. Cabe às democracias resistir. Cabe à sociedade democrática americana também se opor às suas investidas autocratizantes e tentar removê-lo nas próximas eleições (e, antes, retirar-lhe a maioria no parlamento). Mas pode ser tarde.
Tarde, sim, porque já estamos em guerra. A guerra fria atual - a netwar que atravessa fronteiras pervadindo as sociedades nacionais - é a forma de guerra que será dominante no século 21. Isso significa que não haverá uma terceira guerra mundial nos moldes da primeira e da segunda. Serão guerras regionais articuladas mundialmente. Mas a netwar não é uma guerra cibernética, uma guerra pelas mídias sociais ou uma guerra turbinada pela IA. É uma guerra mundial com propósitos sociais. Começa com guerras quentes localizadas como espoletas de uma guerra maior que vai atravessando fronteiras e deformando a opinião pública dos países, sobretudo das democracias onde há liberdade de imprensa e no ciberespaço. Por essa via, polariza e divide as sociedades nacionais, virtualmente impedindo que elas resistam ao poder do mais forte. E impedindo que seus regimes políticos, mesmo quando democrático-formais (apenas eleitorais), ascendam à condição de democracias liberais. A sua “solução final” é exterminar as democracias liberais.
Assim, o Irã, via Hamas (juntamente com a Jihad Islâmica e apoiado por Hezbollah, Houthis e mais uma dezena de organizações terroristas em quatorze ditaduras do Oriente Médio - todas coordenada pela IRGC, a Guarda Revolucionário Iraniana), não luta por território na Palestina e sim para incendiar o mundo contra Israel e as democracias liberais. Do mesmo modo, Trump, ao entregar de bandeja a Ucrânia (começando por ceder partes do território ucraniano já ocupadas pelo expansionismo russo) está apenas permitindo que o mais forte possa fazer o que quiser, mesmo se isso implicar a violação das fronteiras, sobretudo das democracias. Putin não está lutando apenas para expandir seu império, voltando às fronteiras da velha URSS e indo além Europa adentro, mas quer impedir que nos seus domínios floresçam democracias liberais. Essa era a desrazão de Putin: impedir que nos 2 mil quilômetros da fronteira russo-ucraniana florescesse mais uma democracia.
Estamos diante de um combate contra a liberdade, uma verdadeira campanha de erradicação das democracias liberais. Por isso que os países onde reina maior liberdade individual são, justamente, aqueles cujos regimes são democracias liberais: EUA (ainda, apesar de Trump), União Europeia, Reino Unido, Noruega, Suíça, Canadá, Barbados, Costa Rica, Suriname, Chile, Uruguai, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Israel, Austrália e Nova Zelândia.
Trump está errado em quase tudo. Em especial nas suas tratativas com Putin para entregar à ditadura russa os territórios invadidos da Ucrânia, como já foi dito. É inaceitável porque legitimará a violação de fronteiras pela força, suspendendo oito décadas de ordem civilizatória internacional. E é inútil porque - até as pedras do calçamento da Praça Vermelha sabem disso - Putin não vai parar por aí.
Mas Trump está certo em um ponto. Os países da União Europeia precisam mesmo investir 5% do PIB em defesa (embora nem os EUA façam isso). É difícil porque as sociedades europeias ainda não perceberam que o mundo está em guerra (uma segunda guerra fria). E sobretudo não entenderam que essa segunda guerra fria já é a terceira guerra mundial.
As ameaças à liberdade no mundo são enormes se considerarmos que a ditadura russa e a teocracia iraniana não estão sozinhas. Elas fazem parte de um eixo autocrático que inclui Bielorrússia, China, Coreia do Norte, talvez Bharat, Vietnam, Laos, Hungria, Turquia, El Salvador, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola e outras ditaduras na Ásia e na África. E se considerarmos que esse eixo autocrático - via BRICS ou Sul Global - já capturou regimes eleitorais defeituosos, ainda chamados de democracias, parasitados por forças políticas populistas de esquerda, como México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, talvez Indonésia, Eslováquia etc.
Depois de tudo isso não é possível que as pessoas transijam com Trump em nome do seu combate ao comportamento woke. Sim, woke é insuportável, mas não pode ser um espantalho. Não pode justificar as barbaridades antidemocráticas, cometidas pelo movimento reacionário MAGA, só porque está ressuscitando uma espécie de macarthismo contra os identitaristas e os que, a seu ver, se deixaram emascular por eles.
Assim como não adianta ser contra Trump e defender Putin (posição muito comum na esquerda classista, identitarista ou populista), também não adianta ser a favor de Trump e contra Putin. Hoje as posturas de ambos, objetivamente, se alinham.
A conclusão que chego é que, pra enfrentar o sucessor que Trump ungir (se ele não mudar as regras até lá), esse alguém, mesmo comprometido com a democracia, terá que apoiar as políticas do Trump que a maioria da população aprova (políticas de segurança e anti-ideologoa woke). Ou seja, não fazer como o Partido (que um dia já foi) Democrata fez nos últimos anos sob Obama, Biden e Kamala, ou seja, usar a ideologia politicamente correta que diz defender a tal agenda DEI (deveria se chamar agenda "DEI errado") como, tal como os americanos chamam, uma estratégia de "apito de cachorro" (uma mensagem política empregando linguagem em código que parece significar uma coisa para a população em geral, mas tem um significado mais específico e diferente para um subgrupo-alvo, tal como os apitos que, mesmo que todo mundo ouça e se pense que eles estão direcionados a esse todo, na verdade são direcionados apenas pros cachorros ouvirem e entenderem), pra captar votos de adeptos dessa ideologia, que nunca tiveram peso nenhum em decisão de eleições, e mesmo assim querem impor sua hegemonia ditatorial à sociedade, aparelhando instituições políticas, estatais, judiciais, midiáticas e educacionais, tomando, tal como o PT, a democracia apenas como um meio pra fazer "agir estratégico" a fim de tomar de assalto as instituições estatais, midiáticas e sociais.