Há um problema com as concepções de democracia, tanto de juízes da suprema corte e de outras cortes (como já comentei em outro artigo), quanto de analistas políticos. É comum no colunismo político dizer que Musk estaria pretendendo sabotar a democracia, que ele teria o claro intuito de desmoralizar as instituições do Brasil e de incendiar a extrema-direita. E, para tomar partido na luta insensata entre Elon Musk e Alexandre de Moraes, repetir que foi a ação do Supremo e do TSE que impediu o êxito do golpismo de Jair Bolsonaro e seus liderados. Todavia, democratas não precisam tomar partido nessa luta.
Ninguém duvida que Musk não seja um democrata. Ele compartilha aquelas estranhas visões de liberdade de Peter Thiel e de outros investidores americanos em alta tecnologia (como disse recentemente o Thiel: "I no longer believe that freedom and democracy are compatible"). Mas seu entrevero com Alexandre, ao que tudo indica, não tem a ver propriamente com a democracia e sim com a atitude autoritária e censória de Alexandre de Moraes que, além de divergir de suas concepções, deve prejudicar de alguma forma (que não sabemos bem qual seja) os seus negócios.
Não é só Musk. Alexandre e seus pares têm uma visão insuficientemente liberal da democracia, uma visão que reduz a democracia a Estado de direito ou império da lei. Para eles, a democracia é a lei e a ordem impostas pelo Estado à sociedade, mas a democracia liberal não se mede pela capacidade do Estado de se impor à sociedade (convertida em seu dominium, no sentido feudal mesmo do termo) e sim pela possibilidade de a sociedade controlar o Estado. Aliás, é por isso que o regime político brasileiro não é uma democracia liberal (segundo o V-Dem) e também não é uma democracia plena (segundo a The Economist Intelligence Unit). Alexandre e seus pares estão entendendo quase nada disso.
Para que a sociedade tenha essa possibilidade (de controlar o Estado) não se pode restringir - sem um amplo debate e a construção de novos consensos - direitos políticos e liberdades civis em nome da ordem, atropelando o devido processo legal sob a desculpa de que para "salvar a democracia" justificam-se procedimentos de exceção. Que democracia é essa que foi salva no Brasil se o presidente que sucedeu ao golpista Bolsonaro, a despeito de não ser golpista (por ter outra estratégia de poder), também não está convertido à democracia? Não basta não querer dar golpe de Estado para ser democrata.
Lula não apoia a resistência ucraniana à invasão do ditador Putin, mas é um democrata? Não apoia (e ainda sabota) as sanções dos países democráticos à Rússia neoeurasiana expansionista, mas é um democrata? Não apoia a independência de Taiwan contra as ameaças de invasão e anexação da ditadura chinesa, mas é um democrata? Não apoia a democracia israelense (não se fala aqui do governo populista-autoritário de Netanyahu e sim do único regime político democrático do Oriente Médio), mas é um democrata? Não condena claramente o terrorismo do Hamas, do Hezbollah e do IRGC (o "Exército de Guardiãs" ou Pásdárán, do Irã), mas é um democrata? Não repudia o antissemitismo quando disfarçado de antissionismo, mas é um democrata?
Se Lula estivesse convertido à democracia não continuaria hesitando tanto em condenar as ditaduras amigas da Venezuela, da Nicarágua, de Cuba, de Angola, nem se juntaria preferencialmente a governos populistas iliberais, como os do México, Honduras, Colômbia, Bolívia, África do Sul.
Se estivesse convertido à democracia Lula não trabalharia para reeditar um terceiro-mundismo anti-ocidental e anti-imperialista, como se ainda vivêssemos no tempo da primeira guerra fria, antes da queda do muro de Berlim, que parece não ter caído completamente dentro da sua cabeça. Nem teria nos metido numa articulação política disfarçada de bloco econômico chamada BRICS, na qual não figura nem uma democracia liberal, mas apenas ditaduras cruéis e governos populistas.
Basta fazer um levantamento dos posicionamentos de Lula e do PT ao longo das duas últimas décadas para constatar que não são democratas. Sempre apoiaram - e continuam apoiando - ditaduras. Sim, embora o Brasil não seja uma autocracia, seu governo atual e o partido que lhe dá sustentação são autocráticos. Estamos diante de adversários da democracia. Então ficamos assim: "salvamos a democracia" no Brasil entregando o governo nas mãos de adversários da… democracia.
Bem, é claro que se um golpe de Estado estiver sendo articulado ou desfechado, com mínimas chances de sucesso - ou seja, se o golpe for uma hipótese crível ou uma tentativa concreta evidente - é possível que se justifiquem medidas excepcionais. Mas, ausentes tais condições objetivas e subjetivas para um golpe de Estado, manter processos de exceção, sigilosos, censórios, com ritos heterodoxos e intermináveis, configura também um ataque à democracia - cujo sentido não é a ordem, como creem os analfabetos democráticos, e sim a liberdade.