Existem conceitos do século 20 que foram ressignificados no século 21. E alguns conceitos novos apareceram. É necessário conversar sobre um glossário contemporâneo. Por exemplo, sobre os verbetes: Polarização, Populismo, Autocracia, Democracia, Liberal, Conservador, Fake News. Já abordamos o primeiro dos sete conceitos: o primeiro verbete foi objeto do artigo O que é polarização. Abaixo segue o segundo artigo desse glossário político contemporâneo.
POPULISMO
A democracia não é um regime perfeito (não há regime perfeito). Ela tem falhas que podem ser exploradas. Esta é a razão pela qual os democratas liberais são contra os populismos. Porque os populismos se aproveitam das quatro “falhas genéticas” principais da democracia, seja para derruí-la (transformando a democracia eleitoral em uma autocracia eleitoral), seja para enfrear o processo de democratização (impedindo que a democracia eleitoral se transforme em uma democracia liberal).
Falha 1 – A democracia não tem proteção eficaz contra o discurso inverídico.
Populistas mentem o tempo todo, mentem como método.
Falha 2 – A democracia não tem proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a democracia.
Populistas amam de paixão eleições. Quando alguém acusa algum deles de estar violando a democracia, a resposta em coro é: “mas ele foi legitimamente eleito com trocentos milhões de votos”.
Falha 3 – A democracia não tem proteção eficaz contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e o sustentam.
Populistas sempre erodem as normas sem as quais os mecanismos de freios e contrapesos das instituições democráticas não funcionam mais a contento. Por exemplo, transformam os adversários em inimigos e encorajam a polarização para destruí-los ou erradicá-los da face da Terra.
Que regras não escritas seriam estas (que evitam que a democracia se desconsolide)?
A primeira delas é 'aceitar a derrota' como normal no processo democrático. Ela vem acompanhada de outra regra consequente: 'não alegar falsamente que perdeu (ou perderá) porque houve (ou haverá) fraude'. E se completa com mais duas atitudes de civilidade ou exemplos de bons costumes políticos que são: 'parabenizar o vencedor' e 'não tripudiar sobre o derrotado'.
Além disso, respeitar as regras (ainda quando não sejam leis e façam parte de qualquer disputa política normal): 'não acusar as regras (que foram aceitas antes da contenda) pela derrota' e, sobretudo, 'não tentar mudar as regras do jogo durante o jogo'.
Mais exemplos na mesma linha do respeito às regras: 'não mentir', 'fazer oposição leal', 'não ameaçar que vai dar um golpe' e 'não levantar falso testemunho perante a justiça (nem praticar litigância de má-fé) contra um adversário'.
Por último, mas não menos importante: 'não deslegitimar o adversário', 'não transformar o adversário em inimigo (da pátria, do povo, da nação, do Estado, da família, de Deus)', 'não encorajar a polarização (“nós” contra “eles”)' e 'tratar as divergências por meio de um debate aberto e tolerante, valorizando a moderação e a busca do consenso'.
Populistas costumam violar não apenas uma ou outra dessas regras, mas a sua maioria.
Note-se que o primeiro a falar das regras não-escritas que sustentam a democracia foi o próprio Péricles. Segundo o relato de Tucídides, na sua famosa Oração Fúnebre, Péricles teria dito: "Somos impedidos de agir mal por respeito à autoridade e pelas leis, tendo uma consideração especial por aquelas que visam à proteção dos ofendidos, bem como por aquelas leis não escritas que trazem ao seu transgressor a reprovação do sentimento geral". Cf. Tucídides. História da Guerra do Peloponeso, 2. 37-40.
Falha 4 – A democracia não tem proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interações de opiniões.
Populistas se especializaram recentemente em promover ataques de enxame (swarm attacks, contra os quais não há defesa conhecida) contra as instituições e seus ocupantes (os inimigos) que desativam (ou deprimem) o “sistema imunológico” da democracia.
O QUE CARACTERIZA O POPULISMO CONTEMPORÂNEO
O que caracteriza o populismo não é a presença de um líder demagógico. Ainda que o populismo opere sempre por meio de lideranças com alta gravitatem. O que caracteriza o populismo é o seguinte:
√ A divisão da sociedade em uma única clivagem: povo versus elite.
√ O encorajamento de uma polarização política a partir dessa divisão: a política praticada como guerra do "nós" contra "eles".
√ A ideia (majoritarista) de que é preciso fazer maioria em todo lugar, acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido (ou de um grupo ideológico que faz as vezes de partido).
O quadro abaixo resume as características do populismo contemporâneo em contraposição ao liberalismo político:
TIPOS DE POPULISMO
Há até quem faça uma distinção entre populismo cultural, populismo socioeconômico e populismo anti-establishment. O quadro abaixo mostra as três maneiras pelas quais os populistas enquadram o conflito “nós x eles” (apud Populistas no poder ao redor do mundo by Jordan Kyle & Limor Gultchin, Tony Blair Institute for Global Change, 07/11/2018):
O que se mantém nesses diversos tipos de populismo? Obviamente é o "nós" (o povo ou o verdadeiro povo: "the true people" - como dizem populistas como Steve Bannon) contra "eles" (os outros), sejam quem forem uns e outros. O conceito populista de povo não é equivalente à população ou mesmo ao eleitorado: 'povo' é somente quem segue o líder populista ou quem é objeto da sua defesa (o contingente arrebanhável).
O POPULISMO CONTEMPORÂNEO COMO MODO DE PARASITAR DEMOCRACIAS ELEITORAIS
Por incrível que pareça, a maioria dos analistas e jornalistas políticos não sabe o que são os populismos contemporâneos e nem porque eles são os principais adversários da democracia. Esses analistas acham que populismo é demagogia, assistencialismo, clientelismo e irresponsabilidade fiscal.
Mas o populismo não é mais nada disso. É um modo de parasitar democracias eleitorais, degenerando a política como guerra (eleitoral), para consumir e estiolar substância liberal. Seja para transformar as democracias eleitorais em autocracias eleitorais, seja para impedir que democracias eleitorais avancem no sentido de se transformar em democracias liberais.
Usando a classificação de regimes políticos do V-Dem (Universidade de Gotemburgo) pode-se resumir essa "parasitologia política" que caracteriza o populismo contemporâneo no seguinte quadro:
EXISTE POPULISMO DE DIREITA E DE ESQUERDA
Tirando o populismo tradicional, a velha demagogia, que é uma doença endêmica da democracia que afeta mais ou menos boa parte dos políticos profissionais tradicionais (muitos fisiológicos e alguns corruptos), o populismo contemporâneo mais em evidência nos últimos anos é o chamado populismo-autoritário de extrema-direita.
Viktor Orban (Hungria), os irmãos Kaczynski e Duda (Polônia) são populistas-autoritários. Trump (USA) é populista-autoritário, assim como Marine Le Pen (França), Matteo Salvini (Itália) e Nigel Farage (Reino Unido) – conquanto não estejam chefiando governos. No Brasil, Bolsonaro é o melhor exemplo de populista-autoritário. Populistas-autoritários não devem ser colocados no campo democrático só porque disputam eleições. Boa parte das dezenas de ditaduras que remanescem no século 21 também promove eleições: são as chamadas autocracias eleitorais. São iliberais, por certo, mas não apenas isso: são também autocráticas.
Mas existe também um populismo de esquerda (o chamado neopopulismo). Não se sabe bem o que autoriza muitos analistas políticos, no Brasil e no mundo, a fazer de conta de que não existe populismo de esquerda (e que ele não representa uma ameaça à democracia liberal). O que os leva a concluir (embora sem o dizer) que esse populismo não é i-liberal e majoritarista (e, portanto, não-democrático em termos liberais – embora eleitoreiro)?
Os acadêmicos de esquerda estão divididos hoje em três alas: a primeira não sabe o que são os populismos contemporâneos, a segunda acha que não existe populismo de esquerda e a terceira acha (na linha Laclau-Mouffe) que o populismo de esquerda é um bom remédio contra a dominação das elites.
Todavia... o chavismo (de Hugo Chávez na Venezuela) não era populismo? O evoismo (de Evo Morales, na Bolívia) não era populismo? O correismo (de Rafael Correa, no Equador) não era populismo? O kirchnerismo (do casal Kirchner, na Argentina) não era populismo? O lugoísmo (de Fernando Lugo, no Paraguai) não era populismo? O funesismo (de Maurício Funes, em El Salvador) não era populismo? O lulismo (ou lulopetismo) não é populismo? Então? Como se pode dizer que não há populismo de esquerda?
Pior. Nicolás Maduro (na Venezuela) e Daniel Ortega (na Nicarágua) são populistas de esquerda que viraram ditadores. Então? Como se pode dizer que o populismo de esquerda não pode levar a um regime antidemocrático?
O POPULISMO DE ESQUERDA É UMA VARIANTE MARXISTA
E esses populistas de esquerda (ou neopopulistas), em boa parte, estão (ou estiveram) intoxicados ideologicamente pelo marxismo ou sob sua influência. Sim, existem novos populistas de esquerda que – ainda quando edulcorados pelo marketing como líderes moderados e responsáveis – continuam sendo marxistas. Ou seja, são arautos de uma doutrina historicista que admitem (e até amam) a via eleitoral, mas não se dão muito bem com o liberalismo-político, quer dizer, com a democracia liberal.
O problema não é a esquerda (para quem ainda acredita que esse tipo de divisão esquerda x direita é capaz de explicar tudo) e sim o neopopulismo. O problema é que o populismo é i-liberal, guerreiro e majoritarista.
O problema da esquerda marxista (sim, no Brasil a esquerda realmente existente e relevante é a esquerda marxista) são seus fundamentos incompatíveis com os fundamentos liberais da democracia. Quais são esses fundamentos? São três os principais.
1 - O historicismo (a ideia de que há uma imanência na história, de que a história vai para algum lugar, de que a história é regida por leis que podem se conhecidas por quem tem a teoria verdadeira e o método correto de interpretação da realidade).
2 - A luta de classes como motor da história (inclusive na sua variante contemporânea de luta identitarista).
3 - A concepção (e a prática) da política como continuação da guerra por outros meios (já que, em sociedades de classes, a luta de classes seria uma espécie de guerra permanentemente presente): o que leva ao "nós" contra "eles".
Note-se que o marxismo dos dirigentes (ou partidos) neopopulistas pode não ser um problema tão grave. A democracia é sem-doutrina, mas pode conviver com forças políticas constituídas com base em doutrinas religiosas (laicas, como as marxistas e liberais-econômicas; ou não, como as neopentecostalistas etc.) desde que elas não se tornem o centro de gravidade da política. Se o centro de gravidade da política não for democrático liberal, o processo de democratização estará sempre ameaçado de descontinuidade ou retrocesso pela sobreveniência de razões extrapolíticas para regular a política.
OBSERVAÇÕES FINAIS
Populismo é guerra (entendida não como destruição de inimigos e sim como construção e manutenção de inimigos = "eles"): guerra fria eleitoral.
O centro da questão não é que todos os populismos sejam antidemocráticos (o populismo-autoritário é, sem dúvida, mas o neopopulismo não, posto que precisa da democracia eleitoral para sobreviver).
O populismo-autoritário é um parasita que mata o hospedeiro. O neopopulismo é um parasita que convive com o hospedeiro, mas o paralisa (quer dizer, paralisa o processo de democratização).
O que é realmente relevante para entender os populismos contemporâneos é que todos (digam-se de direita ou de esquerda) são: ou i-liberais, ou não-liberais.
Como mostramos no artigo anterior, são os populismos que investem na polarização.