Um apelo civil à nossa imprensa democrática
Diogo Dutra, Inteligência Democrática (23/09/2024)
Nos tempos atuais, a imprensa brasileira enfrenta um momento crucial em sua responsabilidade de ser uma voz independente e crítica. A “Democracia Militante” que emerge em nossas instituições exige que a imprensa atue como um verdadeiro bastião da verdade e da liberdade, e não como uma instituição amedrontada que cede a pressões políticas ou econômicas. Enquanto os dois primeiros artigos da série sobre “Democracia Militante” (artigo 1 e artigo 2) exploraram os limites e as ameaças enfrentadas pelas instituições democráticas, este terceiro artigo foca na responsabilidade e na atuação da imprensa como guardiã da democracia. A questão fundamental é: estamos percebendo diversos sinais de que há algum tipo de medo instaurado que tem anuviado as análises políticas e impedido a mídia de exercer plenamente sua função de oposição?
Este artigo não busca apenas questionar, mas também incentivar a imprensa a se levantar contra os populismos que ameaçam transformar nossa arena pública em um cenário de conflito entre “bem” e “mal”, uma narrativa maniqueísta que corrói a essência da democracia. Esta dinâmica polarizada alimenta a divisão social e distorce o verdadeiro papel da mídia: ser um espaço de denúncia, questionamento e reflexão sobre o que ameaça a nossa democracia.
A imprensa brasileira enfrenta a difícil tarefa de lidar com pressões políticas, econômicas e sociais, muitas vezes navegando em águas turvas entre o medo e a prudência. Como jornalista, intelectual ou influenciador, há a responsabilidade de não se deixar guiar pelo medo, que, segundo Mark Lilla em seu livro “A Mente Imprudente,” pode levar a uma complacência perigosa ou a uma aceitação acrítica de ideologias. Na obra, Lilla enfatiza o papel do intelectual em manter uma postura crítica e equilibrada, resistindo à tentação de se engajar cegamente em movimentos radicais ou ideológicos, destacando que o verdadeiro teste de um intelectual reside na capacidade de resistir às paixões que corrompem a razão.
A carta a seguir, enviada a profissionais da imprensa, é um chamado urgente para que eles reconheçam sua responsabilidade e o perigo de se tornarem cúmplices, mesmo que indiretamente, desse processo de polarização e simplificação que ameaça a pluralidade democrática. Precisamos encorajar nossa imprensa a adotar uma postura mais corajosa, apontando os riscos que se desenham no horizonte, especialmente em relação ao avanço de práticas autocráticas que procuram se legitimar sob o disfarce de proteção à democracia.
Uma carta à imprensa democrática
Prezados profissionais da imprensa brasileira,
Escrevo-lhes com o mais profundo respeito e preocupação, dirigindo-me a todos os profissionais da imprensa brasileira para uma reflexão urgente e necessária. Primeiramente, pergunto-lhes com sinceridade e uma certa angústia: será que o medo não está sendo nosso guia? Será que o medo não está nos impedindo de ver a realidade? Será que nossa inação e complacência, derivada desse medo, não está nos levando para lugares que nos distanciam cada dia mais da democracia?
Chamo atenção para a responsabilidade de cada um de vocês como jornalistas e intelectuais públicos a partir do que Mark Lilla aborda em seu livro "A mente imprudente". Lilla defende que os intelectuais têm uma responsabilidade maior na sociedade: eles devem manter uma postura crítica e equilibrada em vez de sucumbir à tentação de se engajar ativamente em movimentos políticos radicais. Diz Lilla: "Professores eminentes, poetas inspirados e jornalistas influentes mobilizaram seus talentos para convencer quem quisesse ouvir de que os tiranos modernos eram libertadores e seus absurdos crimes eram nobres, se visto da devida perspectiva" .
O momento atual não me parece que tenha esse grau de tentação no sentido de um engajamento ideológico, mas de medo e temor em relação a contra-movimentos que têm surgido mundo afora e no Brasil. E que no fim, tende a causar uma imprudência amplificada pelo medo.
Começo abordando a relação entre a realidade percebida e a opinião pública no Brasil que passa por um momento delicado. A influência de algoritmos, redes sociais e fake news na construção da percepção pública tem colocado em xeque o papel da imprensa como mediadora da verdade. O combate à desinformação e a regulação do espaço digital devem surgir de propostas sólidas, debatidas e construídas com a participação de especialistas e representantes da sociedade civil. O Congresso Nacional, como representante legítimo do povo, deve ser o espaço de maturação dessas ideias. No entanto, parece que o medo tem nos levado a aceitar decisões apressadas e questionáveis dentro de um equilíbrio de poderes, deixando uma "democracia militante" de uma parcela do judiciário comprometer a imparcialidade necessária ao exercício da Justiça.
Precisamos deixar claro que a solução para esse problema não pode ser uma aceitação automática de um processo judicialista contínuo e inquestionável. A imprensa tem o papel fundamental de fiscalizar esse processo e garantir que não seja atropelado por decisões precipitadas.
Além disso, o surgimento de movimentos de base conservadora e carregada de ressentimentos, alimentados por uma sensação de perda de protagonismo em um mundo em constante mudança, não pode ser interpretado como o nascimento de uma “internacional fascista”. O fato de existirem movimentos e pensamentos retrógrados ressoando na base da sociedade não significa que nos últimos 10 anos grande parte da população mundial (ou do Brasil) virou fascista e que precisamos nos defender. Saber separar um sinal de uma real preocupação é parte da apuração e do dever jornalístico. A cobertura midiática precisa evitar narrativas que alimentem um ciclo de medo e polarização. O papel da imprensa aqui é mostrar as complexidades e nuances desses movimentos, incentivando um debate mais qualificado e menos movido por pânico.
Por fim, a rejeição a um movimento insurgente bolsonarista não pode, por sua vez, se transformar em uma aceitação cega de outras correntes que também colocam a democracia liberal em risco. O lulopetismo, mesmo que tenha uma trajetória de aceitação da via eleitoral, não é um agente democratizador, pelo contrário, sua ânsia hegemônica deve ser tratada com o olhar crítico de quem se preocupa com a democracia no Brasil. Não podemos permitir que alianças eleitorais obscureçam os verdadeiros princípios democráticos. A imprensa precisa continuar sua missão de questionar e investigar, independentemente do espectro político.
Assim, o medo não pode ser o nosso guia. Ele distorce a realidade, nos impedindo de enxergar soluções possíveis e bloqueando diálogos construtivos. A imprensa, como fonte de esclarecimento e análise, desempenha um papel crucial na superação do medo. Ela tem a missão de ajudar a sociedade a compreender o que realmente está acontecendo e a construir uma visão de futuro que transcenda o medo. E lembrando novamente Lilla aqui, é preciso ter cuidado ao apoiar regimes ou causas, mesmo que indiretamente pelo medo, pois os intelectuais, com seu poder de influenciar massas, podem ser cúmplices de grandes catástrofes políticas. Diz novamente Lilla em seu livro "A mente imprudente": “O verdadeiro teste de um intelectual não está em seu fervor ideológico, mas em sua capacidade de resistir às paixões que corrompem a razão”.
Com respeito e admiração pelo trabalho de todos, deixamos essa reflexão, certos de que a imprensa brasileira continuará sendo o bastião da verdade, da responsabilidade e do compromisso com a democracia.
Atenciosamente,
[Seu nome]
O desafio da democracia militante na mídia
Ao refletirmos sobre a atuação da imprensa no cenário atual, percebemos que ela deve desempenhar um papel fiscalizador, não apenas dos poderes públicos, mas também das forças que ameaçam a democracia. A carta destaca o risco de uma aceitação passiva de decisões judiciais apressadas, e o perigo da imprensa não questionar a atuação do Judiciário quando este assume um papel mais ativo na definição do espaço público e dos limites da democracia. Nesse sentido, a imprensa precisa ser mais do que um mero espectador; ela deve ser um agente crítico e independente que auxilia na construção de um debate mais saudável e democrático.
O conceito de “Democracia Militante” implica em uma democracia que se defende ativamente de ameaças extremistas, mas ao mesmo tempo deve evitar cair em práticas que minem suas próprias bases. Isso requer que a imprensa mantenha uma postura firme e imparcial, não se rendendo ao medo ou à influência de correntes ideológicas que buscam polarizar e controlar a narrativa. A carta enfatiza que a solução para os dilemas enfrentados não está na aceitação automática de práticas judicialistas, mas sim na manutenção de um espaço onde o diálogo e o questionamento sejam incentivados.
A situação é urgente. Precisamos que a imprensa recupere sua coragem e ousadia para denunciar os riscos que enfrentamos. O chamado à ação civil e à reflexão crítica é, portanto, um lembrete de que a democracia não é uma entidade que se sustenta sozinha; ela depende de instituições sólidas, mas também de uma sociedade ativa e engajada, que esteja disposta a exercer sua cidadania de maneira plena.