Criando caminhos da "democracia que temos" para a "democracia que queremos"
Diogo Dutra, Inteligência Democrática (27/07/2024)
Vivemos um momento de intensas transformações e desafios para as democracias ao redor do mundo. O cenário político atual está marcado por uma crescente polarização, crises institucionais e avanço de tendências autoritárias. Para entender as possíveis saídas para os democratas, primeiro é preciso saber que são esses os momentos que mais clamam pela inventividade e criatividade humana. Como disse John Dewey (1939) em “Democracia criativa: a tarefa diante de nós”:
"Se enfatizo que a tarefa pode ser cumprida somente por esforço inventivo e atividade criativa, é em parte porque a profundidade da crise atual deve-se em parte considerável ao fato de que por um longo período agimos como se nossa democracia fosse algo que se perpetuasse automaticamente; como se nossos ancestrais tivessem sido bem-sucedidos em instalar uma máquina que resolvia o problema do movimento perpétuo na política…"
Trabalho com inovação há mais de 15 anos e pude vivenciar, tanto para problemas simples quanto complexos, a capacidade que o esforço inventivo tem (na escala individual, mas principalmente coletivamente) de superar contradições e paradoxos. Porém, o modo de operar em um contexto voltado para inovação exige competências que muitos de nós não desenvolvemos ou exercitamos ao longo da vida. Um exemplo é que estamos acostumados (fomos ensinados) a organizar atividades em projetos e que só seria possível ter sucesso com objetivos claros e fases bem gerenciadas. Mas o contexto de inovação exige a não utilização de ferramentas que visem o controle do resultado final. É possível vislumbrar, e até desejar parâmetros para um sucesso, mas a inovação de fato surge a partir da manutenção correta do processo (que inclui aprendizagem rápida e ajustes para novos testes). Outro exemplo é relacionado a nossa educação, erigida sobre a objetividade, e sua dinâmica herdada da academia, que criam restrições aos diálogos dado que tem como objetivo definições precisas e o exercício da crítica-defesa. Porém inovar exige que consigamos decompor conceitos a ponto de encontrar brechas para assim ressignificá-los, exigindo portanto um grau de desapego acadêmico e até pessoal. É preciso que exista a suspensão do significado corrente, permitindo assim sua amplificação a ponto de manter o conceito ambíguo, instável, pelo menos por algum tempo, até que se processe a inovação e um outro significado possa surgir.
Ou seja, para que atinjamos a "democracia que queremos", é preciso um esforço inventivo coletivo que encontre alternativas ainda não vistas para as múltiplas insatisfações e crises em relação à "democracia que temos". Mas como fazer isso a partir de estruturas mentais rígidas (de cunho teórico-ideológico) que ao invés de observar a realidade e agir se apoiam em uma idealização que só se sustenta se for assumido o "pacote completo"? Como fazer isso sendo que experiências passadas e expectativas frustradas incrustaram conclusões de insucesso relacionado à falta de vontade política, ao sistema corrupto ou a manipulação de interesses pessoais? Como fazer isso em uma crescente polarização que emocionalmente nos coloca em lugares onde a solução está em negar completamente uma narrativa para colocar outra no lugar?
A primeira coisa a se ter em mente é que é possível fazer política sem mandato. E que a sensação de impotência gerada pela ideia de que "só a política institucional" transforma as coisas não é real. A segunda coisa a se ter em mente é que todo movimento inovador começa pequeno, frágil e à margem do "mainstream". Ou seja, de que não é preciso esperar alguém ou alguns surgirem e que é justamente a partir da ação pequena de muitos pequenos grupos é que surgem movimentos.
A partir disso, então, queremos explorar, neste ensaio, as diversas faces da inovação política e social tendo como base ideias que já estão circulando e que nos tiram das encruzilhadas mentais do debate público raso. E, com isso, estimular e inspirar pessoas que estão inconformadas com o sistema, e que a polarização relegou à impotente posição de espera de algum líder mágico salvador, a fazer projetos. A co-criação de inovações políticas e sociais é em si um meio fomentador de despolarização. Precisamos começar de algum lugar.
Reinterpretar, reformar e inventar
Esse ensaio está dividido em três partes que estão organizadas a partir de alguns recortes temáticos (ou casos) escolhidos de maneira arbitrária e não pretende ter caráter exaustivo ou qualquer aspiração à completude. A primeira parte, "Reinterpretando temas clássicos", tem como objetivo desestabilizar noções que ao longo de décadas foram colocados de maneira antagônica como visões de esquerda e de direita. A partir do momento em que assumimos o ponto de vista da democracia esses conceitos tomam outra forma e podem servir de plataforma para inovações políticas e sociais. A segunda parte, "Reformando uma democracia em grande escala", aborda alguns dos desafios que o Estado-nação trouxe para os sistemas de governo nas democracias e, para o caso brasileiro, discute-se algumas ideias recentes de reformas que, de maneira inventiva, conseguiram ultrapassar paradoxos e limitações do nosso sistema de governo. Por fim, a última parte, "Inventando uma democracia para uma sociedade-em-rede", tem como objetivo explorar novos formatos de participação (e ação) política, bem como novas experiências de democracia que sejam mais distribuídas, mais interativas, regidas mais pela lógica da abundância do que da escassez.
Primeira parte | Reinterpretando temas clássicos
Temas tradicionais como livre mercado, redução da participação do Estado na economia, responsabilidade fiscal, serviços e administração pública, seguridade social, corte de impostos e privatização, são recorrentes tanto nas pautas de análise política quanto na prática política entre o executivo e o legislativo. As também tradicionais divisões entre esquerda e direita, e suas associações às visões respectivamente estadocêntricas e mercadocêntricas, acabam distorcendo e restringindo as possibilidades práticas de propostas de melhoria das condições de vida dos cidadãos. O que poderia ter resultante positiva no equilíbrio entre propostas, quando existem dois pontos de vista diferentes, na prática política vira (i) lentidão e/ou paralisia, (ii) remendos negociados por interesses privados e (iii) projetos ineficientes por conta de mudanças governamentais, revogações e apropriações.
Será que não seria o caso de reconhecer o envelhecimento das divisões entre esquerda e direita já tomadas como "naturais" em nossa cultura política? Será que as visões mercadocêntricas e estadocêntricas do mundo não deixaram de capturar a complexidade das forças políticas atuais e dos problemas contemporâneos? Será que não seria o caso de reconhecer que estas não geram absolutamente mais nenhuma análise nova e nem projetos que nos levem para novas perspectivas de sociedade?
Para conseguirmos gerar inovações políticas e sociais é preciso olhar para esses temas a partir do ponto de vista da democracia. Isto é, reformular todo um processo de genealogia e filosofia política pautadas em concepções conflitantes sobre a ideia de ser humano, felicidade e bem estar. É um trabalho para muitos e que precisaria estar sendo feito, sim, na academia e por muitos intelectuais, porém não restrito a essas elites intelectuais. Como reinterpretar muitos dos conteúdos e ideias e resgatar autores que formam alguma espécie informal de "linha de pensamento democrático"? Augusto de Franco, que há muitos anos vem organizando e refletindo sobre esses autores, escreve em 2016 no artigo "O que foi escrito sobre democracia" publicado no site Dagobah:
"Quando Spinoza afirmou (em 1670) – contrariando Hobbes – que o fim da política não era a ordem e sim a liberdade, não se fez a luz. Assim como os antecessores de Spinoza (nos dois milênios anteriores) foram contrários à democracia de alguma forma, seus sucessores (nos dois séculos seguintes) quando não se posicionaram abertamente contra a democracia, puseram-se a relê-la de uma forma que acabou esvaziando o seu conteúdo. Até a segunda metade do século 18 não houve nenhuma leitura decente da democracia grega que tivesse resgatado ou preservado seus pressupostos fundamentais (o seu “gene” ou meme). Na verdade, de Althusius (1603) a Stuart Mill (1861) não conhecemos muito mais que meia dúzia de pensadores políticos que tivessem, desse ponto de vista, contribuído decisivamente para recuperar e reinterpretar, à luz das condições da modernidade, os elementos fundamentais da democracia dos antigos (a liberdade, a igualdade de proferimento e a valorização da opinião e o exercício da conversação no espaço público). Entre os clássicos da política, do século 6 antes da Era Comum até a metade do século 20, quer dizer, dos precursores dos democratas atenienses até Hannah Arendt, não temos, por incrível que pareça, muitas reflexões sobre a democracia (no sentido “forte” do conceito). Embora se possa situar o surgimento da democracia no final do século 6, a partir da reforma de Clístenes (509), os escritos sobre a democracia só vão aparecer realmente no século 5. Ésquilo, em “Os Persas” (472), afirma a liberdade dos atenienses (oposta à servidão daqueles que têm um senhor). Mas é com Eurípides, em “As Suplicantes” (422), que surge, pela primeira vez, um conceito mais acabado de democracia (tomando como modelo Atenas, com a descrição de alguns de seus mecanismos, como a assembleia democrática, por exemplo)."
Além dos citados acima, autores como John Dewey, Isaiah Berlin, Karl Popper, Robert Dahl, Václav Havel, Humberto Maturana, Norberto Bobbio, Ralf Dahrendorf e John Rawls fazem parte de um conjunto de pensadores que reposicionam o pensamento sobre os fundamentos da política e da democracia. E mais, autores como Maturana nos fazem refletir até sobre as essências do ser humano e o quanto algumas noções, tratadas como verdade até hoje, moldam as concepções de política e de sociedade.
O que será que a nossa tradição intelectual filosófico-política deixou passar que nos traz a tantos desgastes e "becos sem saída"? Muitas noções e dificuldades de diálogo entre as chamadas esquerdas, direitas, progressistas e liberais econômicos, se dá a partir de "ideias clássicas" que tomam, seja o prisma da igualdade ou da liberdade, como ponto de partida e de chegada, e sedimentam a contradição que cada vez mais se conclui como irreparável. Quando se propõe refazer uma tradição intelectual-política sob o ponto de vista da democracia está se propondo olhar sobre autores clássicos, e outros menos considerados, sobre a ótica de que é mais importante cuidar da manutenção da liberdade das pessoas, em convivência pacífica com sua comunidade, para conduzir sua vida da maneira que entende como boa, do que impor qualquer tipo de verdade ideológica ou religiosa como noção de vida boa para todas as pessoas.
Talvez parte desse desvendar, vindo de trás para frente, se iniciaria a partir de John Rawls que propõe, a partir desse ponto de vista da democracia, ou do liberalismo político (como ele chama), enxergar a estrutura do sistema democrático como um sistema político e não filosófico. Ou seja, descartar a ideia de que precisamos de um sistema de "verdades" que supostamente nos levariam a uma "vida melhor" ou "virtuosa" para regrar nossa convivência em sociedade. Cada indivíduo pode ter um sistema filosófico e religioso que lhe convém, mas que estes sejam de tal forma a aceitar estar sob a relação política sustentada pela democracia. A ideia de razoabilidade em Rawls é abordada nesse outro artigo da Revista ID.
O início de um desvendar de pressupostos nos leva a uma jornada intelectual completamente nova que amplia e desfaz muitos dos nós que nos encontramos hoje. É claro que não é preciso esperar toda uma reorganização intelectual para se começar a fazer projetos e inovações políticas e sociais, mas são esforços que correm em paralelo, sendo que um ajuda e suporta o outro.
Além dessa reinterpretação para a construção (ou reconstrução) de uma tradição intelectual democrática é preciso que nos debrucemos em contextos mais atuais, nos quais ainda não existem tantas referências por serem fenômenos ou percepções relativamente novas. A relação entre Estado e mercado, por meio de todo processo atual de digitalização, vem cada vez mais agregando uma quantidade enorme de dados históricos-comparativos que permitem análises, conclusões e novas inferências. Porém a falta de uma perspectiva democrática nessa análise tem gerado conclusões parciais e de certo modo até perigosas.
Assim, se faz necessário reinterpretar também as noções de Estado e mercado sobre um novo prisma, dado que visões estadocêntricas e mercadocentricas disputam as narrativas de regência da sociedade. Claus Offe, pesquisador e professor de ciências políticas, já na década de 90 nos propunha um afastamento dessa disputa a partir de um olhar para três modos de agenciamento independentes e distintos na sociedade: estado, mercado e comunidade. Assim, Offe traz uma nova forma de dinamismo, onde a sociedade (ou comunidade como diz Offe) é uma forma autônoma (e independente) de agenciamento, para além do Estado e do mercado, não sendo subjugada à nenhum dos dois e muito menos subjugando os outros. Uma noção que desestabiliza a necessidade de suplantação, em que uma visão estadocêntrica à sociedade e o mercado são partes de uma estratégia de governo. Ou mesmo de sua contraposição mercadocêntrica, onde as regras de livre mercado regiam o comportamento humano (e a sociedade) de maneira competitiva e utilitarista, assim como o estado operaria a partir de uma lógica administrativa pura e meritocrática. Em outro artigo recente para a revista ID falamos um pouco mais a respeito dessa perspectiva de Claus Offe.
Assim, como já foi dito anteriormente, a reorganização de ideias e conceitos é fundamental para que a inovação política e social possa acontecer em maior escala. É claro que a reinterpretação de temas clássicos é condição, mas é facilitadora desse processo, ainda mais em momentos onde a polarização gera uma quase impossibilidade de diálogo e construção conjunta, em um momento onde tudo é sobre disputar. Portanto, é de extrema relevância que haja também um movimento, paralelo a ações políticas, de reposicionamento intelectual a partir da visão da democracia. Abrir espaço para o novo significa se desprender desses modelos tradicionais de interpretação da sociedade, tendo as caricaturas do marxismo e neoliberalismo como linha aglutinadora e polarizante. Só assim ganharemos respiro para criar inovações em maior escala e eficiência e apostando de maneira mais otimista no nosso potencial criativo para equilibrar as diversas complexidades que nos levarão à "Democracia que queremos".
Segunda e terceira partes: reformar e inventar
A segunda e terceira partes, intituladas respectivamente "Reformando uma democracia em grande escala" e "Inventando uma democracia para uma sociedade-em-rede", continuarão a abertura do tema Inovação política e social sob a perspectiva de ideias e projetos que lidem de maneira criativa com as estruturas formais de governo/Estado, bem como ideias e projetos que têm propostos formas de interagir política e socialmente inspirados, não só pela digitalização e novas formas de interação online, mas sob lógicas que questionem os sistemas atuais baseados em escassez (impedindo ou inibindo participação e inclusão das pessoas na política e na ação pública).